segunda-feira, 24 de maio de 2010

De frente a noroeste do tórax


Cabisbaixo como se andasse há algumas horas sem uma gota d'água, ele insiste na sua caminhada. Ele crê que as promessas, mesmo aquelas que nunca foram compartilhadas com ninguém e que tenham somente virado uma idéia, devam ser cumpridas. E essa foi uma delas. Um dia pensou que deveria caminhar desde sua casa até um lugar que lhe causasse muito desconforto e muita dor. Acordou, calçou um bom pisante e seguiu viagem.
A dor já se manifestou de tantas outras formas que ele não consegue encontrar um lugar que comporte tantas sensações terríveis a ponto de deixá-lo mais insuportável do que já esteve antes. As contrações que vão e vem são apenas forças naturais que o mantém vivo e circulante, não são retratos do sofrimento extremo.
Caminhou mais quatro horas sem água, até que encontrou uma garrafa com um líquido transparente e borbulhante e não aguentou a secura de seus lábios e sua saliva branca e espumada já mostrara que o corpo carecia de um gole. E foi um só gole, porque não suportou mais do que esse tanto. Se não é a dor, de qualquer outra coisa que lhe apareça, o mínimo basta para que continue andando.
Os pés já estavam cansados e os olhos ardendo de sono, até que ele caiu numa gaveta lotada de sabores e cheiros que para ele pareciam comuns, mas que não sabia reconhecer de onde vinham e o que foram para ele. E sua caminhada virou uma corrida desesperada atrás dessas memórias que haviam desaparecido parcialmente, mas que ele sabia que já haviam significado maravilhas e que agora era a vez da dor. Precisava se livrar dessa memória recente, dos cheiros e sabores.
A proximidade com as meias lembranças prolongaram ainda mais a busca e a caminhada parecia não ter mais fim. Quando ele pensou na possibilidade de sentir coisas boas durante sua promessa, a barriga começou gritar de fome, a bexiga começou a torcer, os pulmões alfinetavam o sufoco e a cabeça partiu ao meio. Era metade abismo, metade nuvem.
Seus passos foram desacelerando e ele viu que naquele momento estava abandonando a caminhada. Ele se sentou dentro da gaveta, tomou o resto daquele líquido da garrafa e começou a chorar. Sua bravura e a necessidade pela dor naquele instante se saciaram, pois foi exatamente ali que ele sentiu a maior dor de sua vida. O que lhe causava aquilo era o mesmo que lhe causara êxtase. Tudo virou abismo, até porque as nuvens correm, viram água, mudam de cor, são bichos e astros. Tudo era tão preto que lhe pareceu um bom momento para dormir. O sono durou três dias. Quando acordou resolveu levantar e voltar pra casa, pois se queria sentir dor, a promessa já era e não havia tempo para viver só essa, muitas outras ainda o esperavam para ser cumpridas.
Tirou os pisantes desgastados, estalou o corpo, tomou um banho longo, alimentou-se e já colocou a cabeça para gerar novas idéias, mais e mais promessas para ele continuar bombeando.



Tela: "Rooms by the sea" de Edward Hopper, 1951.

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Sou cantora. Vezes compositora, vezes professora, vezes cozinheira. Gosto de crianças e idosos. Me apaixono e desapaixono na mesma intensidade. Escrevo para não acumular na cabeça o que penso ou fantasio. Construo: tijolo, massa, tijolo, massa, tijolo, massa, tijolo...

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