Cabisbaixo como se andasse há algumas horas sem uma gota d'água, ele insiste na sua caminhada. Ele crê que as promessas, mesmo aquelas que nunca foram compartilhadas com ninguém e que tenham somente virado uma idéia, devam ser cumpridas. E essa foi uma delas. Um dia pensou que deveria caminhar desde sua casa até um lugar que lhe causasse muito desconforto e muita dor. Acordou, calçou um bom pisante e seguiu viagem.
A dor já se manifestou de tantas outras formas que ele não consegue encontrar um lugar que comporte tantas sensações terríveis a ponto de deixá-lo mais insuportável do que já esteve antes. As contrações que vão e vem são apenas forças naturais que o mantém vivo e circulante, não são retratos do sofrimento extremo.
Caminhou mais quatro horas sem água, até que encontrou uma garrafa com um líquido transparente e borbulhante e não aguentou a secura de seus lábios e sua saliva branca e espumada já mostrara que o corpo carecia de um gole. E foi um só gole, porque não suportou mais do que esse tanto. Se não é a dor, de qualquer outra coisa que lhe apareça, o mínimo basta para que continue andando.
Os pés já estavam cansados e os olhos ardendo de sono, até que ele caiu numa gaveta lotada de sabores e cheiros que para ele pareciam comuns, mas que não sabia reconhecer de onde vinham e o que foram para ele. E sua caminhada virou uma corrida desesperada atrás dessas memórias que haviam desaparecido parcialmente, mas que ele sabia que já haviam significado maravilhas e que agora era a vez da dor. Precisava se livrar dessa memória recente, dos cheiros e sabores.
A proximidade com as meias lembranças prolongaram ainda mais a busca e a caminhada parecia não ter mais fim. Quando ele pensou na possibilidade de sentir coisas boas durante sua promessa, a barriga começou gritar de fome, a bexiga começou a torcer, os pulmões alfinetavam o sufoco e a cabeça partiu ao meio. Era metade abismo, metade nuvem.
Seus passos foram desacelerando e ele viu que naquele momento estava abandonando a caminhada. Ele se sentou dentro da gaveta, tomou o resto daquele líquido da garrafa e começou a chorar. Sua bravura e a necessidade pela dor naquele instante se saciaram, pois foi exatamente ali que ele sentiu a maior dor de sua vida. O que lhe causava aquilo era o mesmo que lhe causara êxtase. Tudo virou abismo, até porque as nuvens correm, viram água, mudam de cor, são bichos e astros. Tudo era tão preto que lhe pareceu um bom momento para dormir. O sono durou três dias. Quando acordou resolveu levantar e voltar pra casa, pois se queria sentir dor, a promessa já era e não havia tempo para viver só essa, muitas outras ainda o esperavam para ser cumpridas.
Tirou os pisantes desgastados, estalou o corpo, tomou um banho longo, alimentou-se e já colocou a cabeça para gerar novas idéias, mais e mais promessas para ele continuar bombeando.
Tela: "Rooms by the sea" de Edward Hopper, 1951.
segunda-feira, 24 de maio de 2010
De frente a noroeste do tórax
Postado por Laura Lopes às 20:23
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About Me
- Laura Lopes
- Sou cantora. Vezes compositora, vezes professora, vezes cozinheira. Gosto de crianças e idosos. Me apaixono e desapaixono na mesma intensidade. Escrevo para não acumular na cabeça o que penso ou fantasio. Construo: tijolo, massa, tijolo, massa, tijolo, massa, tijolo...
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